UBUMPURU TRANSVERSAL - UMA CORPA MARGINAL
Leandro Silva, Porto Alegre (RS), 14/12/2023
Espetáculo proporciona a experiência de um ritual cênico em gira, permeada de oralidade, memórias e denúncia contra a transfobia
Foto: Andrea Seligman

Manifesto-ritual contra a transfobia

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

Em setembro de 2023, a atriz AJeff Ghenes estreou seu espetáculo solo Ubumpuru Transversal - Uma Corpa Marginal, com circulação de apresentações e rodas de conversa em várias cidades pelo interior e na capital do Rio Grande do Sul, mobilizando uma extensa rede de colaboradores na criação e produção do trabalho. Tive a oportunidade de assistir o espetáculo presencialmente em 30 setembro de 2023 no Teatro de Arena de Porto Alegre, após acompanhar uma série de publicações nas redes sociais sobre o processo de criação da obra. AJeff Ghenes assina a dramaturgia juntamente com a diretora teatral Izabel Cristina; direção esta, por sua vez, compartilhada com o diretor Daniel Colin.

AJeff Ghenes elabora sua biografia pessoal a partir de alguns entrelaçamentos que são necessários trazer aqui para uma melhor compreensão do alcance de sua Ubumpuru Transversal: ela é uma “multiArtista, corpa racializada, travesti não-binária e periférica”, integrante do GET – Grupo de Estudos Teatrais desde 2018, um coletivo de artistas da cidade de Gravataí. É também intérprete na área da Dança desde 2016 e colabora com os coletivos Bando de Brincantes (desde 2021) e Trupi Di Trapu – Teatro de Bonecos (desde 2022), de Porto Alegre, ambas companhias de reconhecida trajetória. Integra ainda a Cia. Tem Gente no Palco de Veranópolis (RS), coletivo artístico-cultural que assina a produção do espetáculo. Trata-se de espetáculo solo, mas que mobiliza e trama uma rede de colaboração intra e multi artística, mescla vivências reais e ficcionalidades performada e oferendada em um espetáculo-ritual em gira, na qual a vida de AJeff Ghenes é narrada como uma Corpa-Trans-Coletiva, permeada de denúncia social e num jogo tenso, compartilhado com o espectador, sobre a sobrevivência de pessoas trans e travestis no país que há mais de 14 anos lidera o triste ranking do que mais mata pessoas trans no mundo.

O programa de Ubumpuru Transversal conceitua a obra como “encruzilhada para oferendar um Rito Oral, Lendário e Real. Um espetáculo Solo que subverte e descoloniza a sua própria linguagem e proposição estética”. Nesta estrutura cênica ritual, a lenda da Ubumpuru é ao mesmo tempo narrada e corporificada na atriz travesti AJeff Ghenes, intérprete e sacerdotisa de sua condução. Oralidade e memória desaguam em correntes que entrelaçam a história pessoal de AJeff em uma história social coletiva, resfolegada em elementos afro-indígenas, cuir [1] e periféricos e na resistência diária de pessoas trans para re-existirem.

“Quanto tempo você resiste?” Para esta questão ecoada no espetáculo o tempo todo, através do uso de vocalidades cortantes, ou na tensa cena de sufocamento em um aquário cênico ou pelos jogos de imagens em projeção adensada pela iluminação atordoante, a obra não está disposta a meia resposta, nem desculpas, nem rostos virados, nem indiferenças de qualquer tipo frente a esta realidade, posta em carne viva na encruzilhada da “Ubumpuru Transversal”, a serpente mãe que reivindica suas filhas violentadas, espetáculo ritual a Oxumarê, Orixá macho-fêmea, que cobra  o sangue derramado de corpas trans como condição para restaurar o equilíbrio do mundo. 

Sensorialmente, por a obra compartilhar com o público esta experiência de um ritual em gira, nos quais os diversos elementos de cena são encruzilhados sob a condução precisa desta travesti-narradora-sacerdotisa-oferenda, penso ser possível pensar na obra como um espetáculo em “encruzitrava”, que questiona, instaura magia, feitiço, para travar o (cis)tema patriarcal normativo, conforme proposto por Dodi Leal:

A encruzilhada é a gira que faz com que uma dobra narrativa se instaure em conjunto com as viradas do tempo, fazendo com que cada cruzo aumente as possibilidades e direcionamentos possíveis, desatando alguns nós e atando outros [...] Neste sentido, travar tem sido a acepção que remete tanto a uma generética na qual os fluxos éticos de gênero serão inscritos em cada lance do caminho, como também, e principalmente, ao enguiçamento das normas que permite a libertação em fluxos inimagináveis ao cistema. A encruzitrava é, assim, uma convenção para a quebra das correntes do cispatriarcado que faz da norma sua condição de dominação. (LEAL, 2022, p. 151)

Em Ubumpuru Transversal experimentamos uma cena potente e ritual, destinada a gerar magias de enguiçamentos das normas cisgêneras, não com efeito de suspensão, mas de possibilidade de desgastes e quebra de tais normas, demonstrando primeiro que são histórica, estrutural e socialmente construídas e, portanto, passíveis de serem DESmontadas. Dodi Leal questiona, inclusive, se a cena criada e protagonizada por uma corpa travesti não seria ela mesma a encruzitrava do próprio teatro, ao propôr a possibilidade de uma escrita, uma cena e uma pedagogia trans das artes cênicas.  Questão que me remete também ao importante trabalho artístico e intelectual de Isadora Ravena sobre as suas “travecametodologias”, entendidas como metodologias específicas de criação em arte contemporânea por corpas travestis, metodologias travestis, pois em termos metodológicos, o espetáculo “está indissociado de seu processo de criação, que mobiliza uma ampla rede de colaboradoras e foi exaustivamente divulgado, apresentado em rodas de conversas e bate-papos após apresentações e cujas metodologias e procedimentos de criação são continuamente retomados e sistematizados.

A diversidade da equipe, de fontes e de procedimentos criativos são destacados no programa da obra como “uma equipe criativa que é reflexo do social [...] Uma vivência imersiva conduzida pelo corpo e mente de uma A/R/Tógrafa. Um sampleamento TRANSpofágico da Cultura Ballroom e Afrodiaspórica, evocando nessa TRANScentralidade o Vogue e a Dança Afro, como elementos identitários dessa nova criação”. Como resultado, temos uma cena capaz de operar como círculo de uma magia criadora, enquanto, aqui mobilizando algumas das ideias de Isadora Ravena, “resfolega” com outros saberes, especialmente pretos, indígenas e feministas.

TRAVECAMETODOLOGIA É FEITIÇO. É mandinga. É bruxaria. É magia. É benção e maldição. É sortilégio. É conspiração. É confabulação - com fabulação. É sedução. É caruara. É Cabuíje. É pembação. É manipanço. É macumba. É trabalho. É oferenda. É despacho na encruzilhada, na encruzi-trava. É amarração. Sedução. Fascínio. Toda travecametodologia é ferida e é cura, é xamã, é pajé, é mãe. Toda travecametodologia é encantamento, ou melhor, encantravamento. (RAVENA, 2022, p. 98)

Uma condição para realização destas metodologias de criação travesti em arte sugerida por Ravena, ou seja, destas como espaço mágico e encantatório de travamento do (cis)tema patriarcal, aparece em Ubumpuru Transversal nas suas múltiplas referencias trans-afro-indigenas-centradas, como uma obra teatral que respira junto, que resfolega com estas referencias várias. É este resfolegar coletivo a condição da sua possibilidade criativa. Ravena (2022, p. 99 ) destaca para nós que “Toda travecametodologia tende a permanecer refém desse mundo se não estiver em constante resfolego com os demais saberes transgêneres, com os saberes pretos, com os saberes indígenas e com os saberes de todos aqueles povos que carregam em seus corpos o trauma colonial”. Este resfolegar não me parece colocado em “Ubumpuru Transversal” como uma mera opção no processo criativo, mas como condição para que de fato os processos artísticos tramados na composição do espetáculo atuem como mecanismos capazes de “travar o (cis)tema” e desmobilizar a cisnormatividade que opera em processos de produção de mundo que “anormaliza, inferioriza, extermina, de formas interseccionais, diversidades corporais e de identidade de gênero” (VERGUEIRO, 2018, p. 27).

Importante emitir ainda algumas notas acerca dos recursos cênicos presentes, na qual diversas tecnologias de luz, som, imagem, manipulação de objetos e  figurinos operam na composição de sua “encruzitrava encantatória”. Trata-se de uma diversidade de elementos com acuradas tecnologias de construção e o uso de materiais de difícil controle como a presença de água (real) e a movimentação de operadoras de luz em cena, que exigem da atriz AJeff Ghenes rigor e precisão nos seus usos e abandonos, inclusive com margem de risco considerável para a artista e plateia, postas em margem segura pela marcação precisa durante a apresentação. Dentro desta margem, a atriz demonstra estar absolutamente à vontade com o potencial do ferramental cênico à sua disposição, que inclui ainda o uso de microfone em pedestal, interferência de imagens em projeção e a troca ou transformação dos muitos figurinos e acessórios.

A iluminação cênica é um destaque à parte, pois subverte o seu uso convencional, com focos movidos por assistentes dentro da cena e com uma linha de direcionamentos que torna a atriz, ela própria, emanadora de luz. É a corpa-luz de AJeff Ghenes a catalizadora e distribuidora das texturas de penumbras multicoloridas que compõem a estética do espetáculo, penumbras como essa condição/tempo que permitem fluxos entre as possibilidades de trânsitos e modulações (livres) entre escuridão quase total e iluminação em cores ofuscantes, ou translúcidas quando vemos seu rosto e corpo interfaceados por peças de acrílico, plásticos e tecidos. Na obra, percebemos de forma explícita e material a afirmação de Dodi Leal de que a luz é trans!

…a luz não ilumina o corpo; a luz hoje é orgânica, a luz é corpo. E, não esqueçamos de notar também que sexualidade é tecnologia. Classe social é tecnologia. O gênero não é um objeto perscrutável, o gênero é dispositivo produtor de luz. Os processos étnicos-raciais não são um mero assunto social, os processos étnico-raciais são tecnologias avançadas de produção de iluminação. Não há uma luz das mulheres. A luz é mulher. E as mulheridades somos uma tecnologia do social. E se ainda não se percebeu, digo para que fique explícito: a luz não é cis, a luz é trans! (LEAL, 2022, p. 148). Grifo nosso.

O espetáculo é, acima de tudo, uma experiência política e necessária para pensar em modos de re-existências trans, afro, feministas, que atinge de forma direta e pessoal seus espectadores. Do meu lugar de artista-homem-cis-gay saí da plateia bastante inquieto sobre o quanto a cena teatral em que eu colaboro com outres DE FATO contribui para a DESmontagem do CIStema patriacal cisnormativo que trama mundos desiguais e excludentes. Contas que cada uma e cada um deveria prestar ainda em vida à Sagrada Ubumpuru.     

REFERENCIAS

 

[1] O termo “cuir” é uma derivação latino-americana do “queer”, que vem sendo utilizado para se referir a experiências de dissidência sexual e de gênero de forma mais direcionada às questões raciais e de classe, em contraste com a perspectiva eurocêntrica.

LEAL, Dodi. Biotecnologias da Cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas: In: DALAQUA, Gustavo; NOYAMA, Samon. Boal e a Filosofia Curitiba: CRV, 2022.

RAVENA, Isadora. Prototeses para travecametodologias de criação em arte contemporânea. Revista Poiésis, 23 (40), 95-103, 2022.

VERGUEIRO, Viviane. Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial / Viviane Vergueiro. - 1a. ed. 1a. reimp. - Brasília (DF): padê editorial, 2018.